O predestinado deve evangelizar?

Um erro recorrente entre os que crêem na predestinação é o entendimento de que não há necessidade de evangelização. Os geralmente chamados de hipercalvinistas, acreditam que, pelo fato de Deus ter predestinados todas as coisas, não há necessidade de se evangelizar, pois os salvos irão, necessariamente, se converter. Esse é um erro que tem sua fonte na falta de entendimento do que foi predestinado e das próprias declarações bíblicas que apontam para a tarefa da evangelização por parte de todos os crentes.

Antes de tratarmos da evangelização em si, devemos rever a doutrina da predestinação. Salmo 139, Efésios 1 e Romanos 8.26-39, são textos muito úteis e devem estar na mente do leitor para a compreensão da argumentação a seguir. Em primeiro lugar, temos de entender que Deus não predestinou apenas o destino final da pessoa, mas toda a sua vida. Pensar no plano do Criador como um princípio e o fim é ignorar nossa própria existência e presença no hoje, isso é, no meio. É óbvio que não estamos no início, tão pouco no fim, portanto, estamos naquilo que seria o limbo dos hipercalvinistas. Quando planejou o destino das pessoas, Deus estabeleceu o meio pelo qual chegaríamos ao fim, ou a este destino, o que nos leva ao segundo ponto: a predestinação não pode ser uma questão de destinos, pois ela se refere à glória do Filho.

Ao contrário do que alguns antropocêntricos do meio evangélico podem pensar, os planos de Deus não nos tem como foco, mas a seu Filho. Como podemos ver no relato do batismo de Jesus, ele é o prazer de seu Pai. Além disso, Paulo nos conta em Efésios 1, que o plano eterno de Deus já levava em conta o fato histórico da encarnação, morte e ressurreição de Cristo. Isso significa que o plano de Deus era a realização histórica da obra Redentora de Cristo, o que nos mostra que o foco de Deus não está no fim, tão somente, mas de um fim alcançado por um meio. Desta forma, percebemos que a predestinação tem por finalidade revelar a glória do Senhor, através da perfeita ação de Cristo no tempo e no espaço, isto é, na história, ou no meio.

Em terceiro lugar, podemos ver que a vida de todos nós foi predestinada, portanto, ela existe para a manifestação da glória de Cristo. Vemos no Salmo 139 que todos os nossos dias foram predestinados e em Efésios 1 que o objetivo de Deus era o de fazer com que todas as coisas convergissem para seu Filho. Daí, não é difícil vermos que as duas coisas estão relacionadas. De fato, a segunda motivou a primeira. Ou seja, no desejo de manifestar a glória de Cristo, o Criador estabeleceu nossas vidas.

Em quarto lugar, o objetivo de Deus são fatos, não planos. Parece óbvio, mas pensar que as coisas vão acontecer simplesmente por ter Deus planejado-as é insuficiente. Se o Senhor quer fatos ele tem de cuidar, ou prover meios para que eles ocorram. A isso, aliás, chamamos de providência. É a ação de Deus em garantir a realização histórica de seus planos. Desta forma, quando pensamos em salvação, redenção, chamado, glorificação, regeneração, fé, conversão, igreja e tudo o mais, temos de entender que o Criador estabeleceu meios para que isso se tornasse fato. É ai que, quando falamos de fé, conversão e igreja, falamos de evangelização.

Através dos séculos, o Senhor estabeleceu seu povo. Em princípio ele enfatizou o aspecto da aliança familiar, mas, em Cristo, vemos que isso era uma sombra da promessa de proporções mundiais a serem inauguradas em Cristo (não que antes isso já não fosse mundial, mas, em Cristo, isso se tornou uma verdade tácita ao povo de Deus, isto é, sua igreja. Haja vista a presença de judeus não de berço na genealogia de Jesus). Nesta nova fase do plano de Deus não foi diferente. Vemos, mais uma vez, ele estabelecendo seu povo, sua igreja. O meio por ele estabelecido, desde a eternidade, é o da proclamação. Aqueles que já fizessem parte de seu Reino deveriam proclamá-lo. Por isso, não evangelizar é dizer que Deus forma sua igreja de outra maneira. No entanto, não é o que vemos nas Escrituras.

Em Marcos 16.15, Jesus, logo após sua ressurreição, instruí os discípulos. Seu desejo era que sua pregação fosse ouvida nos quatro cantos da terra (Atos 1). Para que tanto fosse realizado, o Senhor concedeu poderes aos apóstolos, a fim de que os ouvintes pudessem ver que eles, verdadeiramente, andaram com Cristo. É por isso que vemos os apóstolos tão dedicados na obra de evangelismo, arriscando suas vidas. Eles viram quem era Jesus. O viram morto; não creram quando disseram que ele vive; o viram aparecer dentro de uma casa com portas fechadas; viram as marcas de seu martírio em seu corpo. Certamente, diante de tantas experiências, aquela era uma ordem a ser obedecida – e que valia a pena ser obedecida.

Contudo, você ainda poderia dizer: “e o restante das pessoas com isso?”; “O que tem a igreja com a obra dada aos apóstolos?” Em Mateus 28.19,20, vemos a passagem paralela a de Marcos 16.15, com uma diferença: a ordem de Jesus para que os discípulos ensinassem os crentes a guardarem tudo o que lhe foi ordenado. Ora, não há porque pensar que a ordem de proclamação não está inclusa nisso. Além disso, alguns poderiam argumentar que o intuito era o de que os crentes guardassem o conhecimento. Embora isso pareça ter algum sentido, fica difícil argumentar nessa linha quando o conhecimento se trata de ordens sobre o que fazer ou não, além dos fatos e das verdades teológicas sobre Deus e seus planos. Seguindo nessa linha de raciocínio, não teríamos de fazer nada, só conhecer? Tornaríamos-nos gnósticos, onde o conhecimento salva – a simples reflexão basta? De modo nenhum!

Guardar uma ordenança é obedecer, ou cumprir tal ordenança. Se Jesus ordenou a seus discípulos que proclamassem e ensinassem sua ordenança aos que viessem a crer, então, Jesus queria que estes últimos se tornassem proclamadores. Interessantemente, aqueles que pensam não ter a missão de evangelizar, não pensam o mesmo sobre orar, ler a Bíblia, confiar nas promessas de Deus, enfim, não recusam a parte fácil, benéfica e que não nos expõe a qualquer tipo de embaraço. Mas, sigamos enfrente com a argumentação bíblica.

Em Romanos 10 temos uma declaração de amor de Paulo. Ele mostra seu amor por seu povo, os Judeus, falando de seu desejo de que se convertam a Cristo, ainda que ele pense não haver injustiça da parte de Deus em condenar judeus, já que o soberano Criador é quem escolhe de quem quer ter misericórdia. Prosseguindo em sua argumentação iniciada no capítulo 9, Paulo agora mostra que todos, judeus e gregos, podem confessar a Cristo, pela fé, e viver por esta fé. Enquanto os judeus que recusam a Cristo tentam viver pela lei, os que crêem, vivem por Cristo, de modo que não há mais distinção entre judeus ou gregos, pois todos são um em Cristo (ler bem Efésios). Essa fé é declarada pelos lábios, mas Paulo argumenta que tal fé só sairá dos lábios por meio da pregação, por a fé vem pelo ouvir da Palavra.

Desta forma, Paulo motivou os romanos a proclamarem o evangelho, o que fica evidente pelos capítulos seguintes, nos quais se ensina a responsabilidade dos crentes em cumprir tudo o que compete a Igreja, inclusive a manutenção de sua própria existência. Para tanto, segundo Romanos, o Senhor da Igreja lhe concedeu dons e tantas outras coisas importantes no dia a dia da igreja (caps. 11ss). Isso significa que o Pai equipou a Igreja para continuar expandindo, mesmo sem os apóstolos.

Acompanhando o ensino de Romanos 10, vemos Paulo instruindo a igreja de Corinto, em 1Coríntios 1.21, que é pela pregação que o Senhor salva seus escolhidos. Ao falar sobre esta pregação, Paulo diz que “nós” pregamos a Cristo; quem seria esse nós? Apóstolos, sim, certamente, ele havia citado Cefas, isto é, Pedro. Mas, além de Pedro, Paulo citou Apolo, um pregador já conhecido em seu tempo, que não era, obviamente, apóstolo. Isso nos mostra que Paulo nunca entendeu que somente os apóstolos deveriam pregar o evangelho. Tal afirmação é corroborada por Filipenses 2.15,16, onde lemos que a Igreja (na pessoa dos membros da igreja de Filipos) tem a responsabilidade de fazer resplandecer ao mundo a santidade que há pela obra de salvação, preservando, assim a “palavra da vida”.

Em Efésios 4.11, vemos uma citação do dom de evangelista, que não vem acompanhado de qualquer restrição aos apóstolos. Indo na mesma direção, Pedro ensinou aos cristãos da diáspora, que o Senhor os chamou das “trevas para sua maravilhosa luz”, a fim de torná-los proclamadores de sua maravilhosa luz (1Pe 2.9). Isso não poderia ser diferente, pois, se o evangelho significa tamanha mudança, como isso pode significar outra coisa que não lábios cheios, transbordantes das maravilhas de Deus?

Poderíamos continuar citando textos, mas basta lembra que, além dos apóstolos e Apolo, já citados, o irmão Timóteo, foi um pregador do evangelho. Barnabé, Estevão e tantos outros relatados nas páginas do Novo Testamento, dão testemunho de que o peso da evangelização está sobre a Igreja, e não sobre os apóstolos somente. Talvez a dificuldade dos hipercalvinistas esteja em entender que Deus não depende de nossa ação, mas escolheu soberanamente usá-la. Além disso, tem de se deixar claro que não é a força de nossos argumentos que convertem alguém, mas a ação do Espírito em fazer a pessoa entender o que ela ouve. Por último, penso que o servo de Cristo que diz que não há necessidade de evangelização, além de preguiçoso, não contemplou corretamente o significado de sua salvação, pois, como ficar de lábios fechados diante do fato mais empolgante de todos: nosso Redentor morreu em nosso lugar e nos deu paz com Deus; a paz que excede todo entendimento?

Por isso, se a voz do evangelho já se fez ouvir em sua vida, vá proclamá-la. Aproveite os que se aproximam querendo ouvir, o Senhor os enviou. Seja ativo e busque os eleitos de Deus; chame-os para que cumpram a razão de sua existência. Talvez você não precise sair de seus caminhos diários, mas, certamente, terá de ficar mais atentos às oportunidades de proclamar que lhe aparecem.

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