Em Espírito e em Verdade


Em João 4 temos o encontro, em minha opinião, mais revelador dos evangelhos. O senhor Jesus pede a uma mulher samaritana que lhe dê água. Só por essa atitude do Senhor, considerando os meandros que cercavam a relação entre os judeus e os samaritanos (um grupo judeu marginalizado), já se pode verificar que aquele encontro teria grande significado. O que estaria um homem, de Nazaré, conversando com uma mulher samaritana e sozinha?

Já era estranho um judeu conversar com um samaritano, também era estranho um homem sozinho conversar com uma mulher; mais ainda um homem judeu conversar com uma mulher samaritana. Por isso a reação da mulher diante do pedido do Senhor. A resposta de Cristo dirige o diálogo para uma realidade muito mais profunda e real do que a velha rixa entre judeus e samaritanos.

Focada na literalidade da situação, aquela mulher ouve do Senhor que ele, um judeu que lhe pede água, tem algo para dar que mata a sede eternamente. A mulher não entende, não faz a menor ideia de quem está diante dela. Jesus mostra o problema; não só a samaritana não sabia diante de quem estava, como também não conhece o dom de Deus. É óbvio que conhecer a Cristo e o dom de Deus é a mesma coisa, mas o dom de Deus é anunciado desde o AT e é personificado em Jesus, de modo que, há muito, aquela mulher já deveria ter algum entendimento do assunto. Ao invés disso, mesmo diante desta palavra do Senhor, a mulher retorna seu foco ao poço fundo.

A insistência da samaritana na literalidade da impossibilidade de Jesus tirar por si só água do poço conduz o diálogo para um lado mais pessoal. O Senhor fala de águas vivas, que matam a sede existencial do homem e tudo que a mulher consegue pensar é em sua sede física e no trabalho de ter de ir até o poço tirar água. Presa e esses pormenores da vida, Jesus faz um pedido àquela mulher que serviria de pretexto para que o Senhor mostrasse quem ele era: “Vai, chama teu marido e vem cá”.

Ao pedir que chamasse seu marido, Jesus queria mostrar que ele sabia de sua vida. Tal conhecimento deixou a mulher intrigada e fê-la mudar sua disposição em relação ao Senhor. Agora, já deixando a sede e a água de lado, ela procura encontrar razão para sua fé, voltando-se para a velha rixa entre judeus e samaritanos. Com dificuldades em ir além de questões tão supérfluas, a samaritana recebe uma resposta inimaginável vinda de um judeu.

Na autoridade de ser quem é, Cristo aponta para a verdade absoluta, que tanto judeus e samaritanos ignoravam. Enquanto eles estabeleciam e focavam lugares e objetos como essenciais à adoração, o Senhor traduz de modo claro o princípio que está por detrás de “misericórdia quero e não holocaustos.” Da literalidade pecaminosa, que não deixava aquela mulher entender a profundidade do que Jesus estava oferecendo, o Salvador a conduziu à realidade mais profunda sobre a existência humana: dependemos não das coisas, mas de Deus.

Ao responder que o Pai procura adoradores que o adorem em Espírito e em Verdade, o Redentor estava nos dando o verdadeiro alicerce da adoração. Enquanto o homem se “amuleta” (toma muletas) em utensílios e lugares, em formas e formalidades, nosso Senhor se colocou como único meio procurado por Deus. Para que criaturas caídas possam ser aceitas como adoradores, elas não podem contar com as virtudes de coisas criadas – e também caídas. Diante do Pai, somente o Filho.

Esse é o sentido das palavras de Cristo: “os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em Espírito e em Verdade”. Faço questão de escrever Espírito e Verdade, ao invés de espírito e verdade, pois o Senhor estava falando de pessoas, e não sobre instrumentos. Espírito é ninguém menos que a terceira pessoa da trindade. Verdade, segundo o conceito apresentado no evangelho de João, é ninguém menos que o próprio Filho. O Espírito é aquele que, segundo João 16, guia e dirige os servos a Cristo. Ele é o revelador e confirmador da presença real e permanente de Cristo na vida do homem. Jesus é a personificação da verdade divina. Ele, que é um com o Pai, criador de todas as coisas, aquele que externiza e revela os desígnios de Deus, estabelecendo a realidade e verdade sobre tudo e todos.

Adorar o Pai, portanto, nada mais é do que ser guiado pelo Espírito a Cristo, nosso sumo sacerdote. Nele, por sua vez, gozamos a possibilidade nos achegar ao trono do Pai (Hb 4.14-16). A mulher, bem como os judeus, e a maioria de nós, estava presa à concretude do que é palpável e manipulável, por isso vivia uma adoração irreal, a ponto de não ter efeitos em sua vida, devastada pela luxúria e adultério. Estando ali, diante da Verdade, ela podia contemplar a realidade que para muitos é abstrata, mas que na realidade do Espírito, não só é concreta, mas também pessoal.

Assim posto, vemos que o concreto (Jerusalém, templo, monte, arca da aliança, sacrifícios), num paradoxo divino, é apenas uma representação, um tipo, uma encenação. E pela Verdade, antes imaginada ser abstrata, impessoal, temos a realidade e unicamente suficiente ao homem caído, necessitado de ser devastado por ela, para que possa ver a si mesmo vazio de qualquer justiça própria. Nem em Jerusalém, nem no monte, mas o Pai quer que o adoremos cobertos por seu Filho amado, em quem Ele se compraz.

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