"Há tempo para todo propósito debaixo dos céus"

 

A pandemia tem sido uma tragédia social e pessoal. Todos nós podemos ver a tragédia que está nossa política, o convívio, a economia e outras áreas de relação social. Pessoalmente, creio que todos nós fomos atingidos, quando não em cheio, isso é, com a perda de alguém da família, perdemos pessoas próximas, amadas, que tinham um lugar no nosso dia a dia.

No ano que se passou, vi um amigo de longa data partir. Geraldinho foi um golpe duro no coração, de alguém querido, confidente e que já fazia parte de minha vida há 26 anos. Ainda novo, pastor, pai, esposo, amigo, servo, aprouve ao Senhor leva-lo e nos fazer enfrentar a face dura do sofrimento.

Ontem, a mãe de um amigo de infância, “tia” Edna, partiu. Meu amigo Leandro, que cresceu sem o pai, não pode nem ir vê-la, para despedir-se. Tia Edna era daquelas mães de amigo que te leva pros cantos, deixava ir na casa dela fazer uma bagunça. Uma lembrança que tenho é que foi na casa dela que dei meu primeiro beijo. Que coisa para um pastor contar, mas é verdade. Nem crente era, uma sobrinha dela estava lá e eu até que dava para o gasto na época. Leandro é amigo até hoje, o que já soma seus 34 anos de amizade, mesmo à distância.

Hoje, um irmão que se fez minha ovelha partiu. É assim: eleições e designações fazem de algumas pessoas nossas ovelhas. Por outro lado, há ovelhas que se fazem nossas ovelhas. Buscam você e lhe fazem participar de suas vidas. O Presb. Jair (nada ancião) fez isso. Quando ele começou a interessar-se por teologia, me procurava para tirar dúvidas. Quando queria casar, me procurou para conversar. Quando teve dificuldades, buscou meu conselho. De tal forma se tornou participante de meu aprisco, que quando não estava bem, pude perceber e auxiliar sua família em momentos de muita dúvida, luta, desilusão e impotência. Chegou o momento em que o pastoreio não era o que precisava. Precisou de um leito hospitalar, de equipamentos, medicações, especialistas e pessoas que estavam ali cuidando do corpo. Graças a Deus, a alma estava cuidada, a fé depositada, a justiça aplicada, a santidade sendo vivida e a glória ansiada.

Chegou o momento em que tudo se dividiu. Corpo e alma tomam caminhos diferentes. Chamamos de morte, também de recomeço, de plantio, pois uma semente não se torna uma árvore se não morrer, como nos ensinou o apóstolo Paulo. Nesse momento meu irmão encontra-se dividido. Seu corpo experimentará a corrupção da realidade caída e sua alma a glória da realidade celestial. Um dia, tudo estará junto eternamente e numa glória plena. Mas isso é “um dia”. E agora?

Agora é entender que até esse momento tem um lugar em nossas vidas. Esse momento é o de encarar uma dura realidade: o sofrimento foi feito para doer. A realidade de que existe rompimento, partida, afastar-se de abraçar, espalhar, chorar não é para ser evitado quando bate à porta. Não dá para deixar lá fora, fingindo que não existe.

Hoje, minha tia me ensinou uma expressão em inglês: “end run”. Significa uma tentativa de se contornar o problema. Vem do futebol americano é a corrida por fora que um jogador faz, para evitar a linha defensiva, ou o confronto direto com o time adversário. Simplesmente não dá para fazer isso na vida, ainda que seja momentos como esses.

O que há de tão complicado em tudo isso é que a fé não tem caminhos para eliminar o sofrimento. Pelo contrário, nossa fé tem lugar para o sofrimento, especialmente se lembrarmos que foi o sofrimento de nosso Redentor que tornou nossa fé sustentável. Foi o sofrimento das testemunhas da aliança de Deus com seu povo que sustentou a fé. É o sofrimento que nos faz ansiar pelo que virá. É no sofrimento que participamos e temos melhor dimensão do que nosso Redentor passou. É no sofrimento que enxergamos melhor quem somos e onde estamos. Portanto, a dura realidade é que o sofrimento foi feito para doer, fazer sofrer, arrancar lágrimas.

Por isso, a melhor forma de olhar essas perdas é de modo embaçado e distorcido pelas lágrimas. É pela entrega do coração ao amor doído da saudade, do sentimento de que não se poderá mais estar com a pessoa, olhá-la, ouví-la, abraçá-la, pastoreá-la. É entendendo que nossa fé nos sustenta na dor, para suportá-la, e não para alimentar uma impassibilidade, é que poderemos tirar algum proveito de situações tão tristes. Por isso, choro a partida de cada um e aprofundo essa dor pela partida de cada um que não sei o nome, mas sei que causam o mesmo sofrimento em outras pessoas.

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