Teodicéia, uma tentativa



Deus e o mal é uma das questões mais fundamentais para a teologia/filosofia cristã. A indagação de como pode um Deus bom criar e existir o mal em sua criação nos leva a constantes embates com a fé, com aqueles que não têm fé e com as Escrituras. Sou conhecido por categoricamente afirmar que Deus criou o mal. Não faço essa afirmação do alto de uma certeza incauta, ou de uma displicência ingênua.
Depois de muitos anos estudando e lendo, cheguei em um ponto em que não vi alternativa. O agostinianismo oferece uma resposta robusta e elaborada, porém, não consigo concordar com o conceito de liberdade agostiniano e não penso que ele lide bem com a relação criador criatura. Claro que posso estar errado em cada uma de minhas afirmativas e conclusões, porém, foi o que consegui alcançar.
Proponho-me aqui a elaborar minha forma de pensamento, sem me opor as demais. Não desejo discutir ainda o assunto, mas expor o que penso. O debate é bom, produtivo, mas só com pessoas que realmente conseguem entender os efeitos noéticos do pecado, ao ponto de não se tornarem vaidosas de suas ideias e estarem sempre abertas ao questionamento e a correções.

1. Criação/Criador

Primeiro ponto que entendo ser importante para essa reflexão é o entendimento do significado de estarmos em uma criação. O significado desta realidade premeia cada nanômetro da existência de simplesmente e exaustivamente todas as coisas. Se cremos que há uma pessoalidade por detrás de toda nossa realidade, isso significa que, todas as coisas têm um propósito e uma relação com o Criador. Nossa realidade é relacional.
A Escritura não inicia com a narrativa da criação por simples cronologia. Seria de se esperar que ela iniciasse com a narrativa do êxodo, para dar ensejo ao porquê de a revelação da criação ser necessária e registrada. Foi para refazer um povo conforme à fé que o fez ser uma nação separada das demais que a narrativa foi revelada. Deus intentava retirar o Egito do coração dos israelitas, porém, a revelação não está limitada a seus primeiros destinatários, portanto, mais do que uma questão contextual, a Escritura tem razões teológicas para iniciar com a criação.
O primeiro fato que o Senhor deseja que saibamos sobre ele é que ele é criador. Tal verdade aponta para o caráter de sua relação com as coisas. Diferente de nós, sendo criador ele é independente, imutável, inalcançável, solitário em sua posição, sustentador de todas as coisas. Ele define ambientes, entes, existência, propósitos, definições, termos, ideias, lógicas, razões, abstrações e concretudes de cada átomo existente. Ele define a relação de causa e efeito entre as coisas e o faz de fora, da posição de quem trouxe essa relação à existência.

 1.2. O criador define

Afirmar que os termos não vêm dos termos não se trata de simples frase de efeito. Os termos existem por uma ação criadora e não por uma necessidade lógica. Nossa elaboração racional é simples verbalização de uma realidade externa com reflexos internos. Não podemos ser apenas materialistas e entender nossa internalidade através dos sentidos, como se a verdade fosse apenas o atomismo epicúreo. Perceber os efeitos do objeto não nos dão completo entendimento sobre o objeto, portanto, os sentidos não bastam.
Entender que temos um criador, significa que, compreensão requer mais do que reflexão, requer revelação. É o criador quem nos define e ao mundo a nossa volta. É ele quem estabeleceu nossa ligação com as coisas e das coisas entre si, de modo que, todo termo deve ser a ele referente – ou, como diz Davi Charles Gomes, teorreferente. Essa teorreferência aponta para a necessidade de que cada termo seja divinamente defino e compreendido. Deus tem de fazer parte de nossas definições.
Em outro texto, Os termos não vêm dos termos, exemplifiquei esse ponto tratando da ideia de liberdade. Não podemos definir liberdade a partir das relações com as opções, mas de sua relação com Deus, daí, as opções (ali demonstro que a única opção livre é Deus, todas as outras são prisões pecaminosas). Assim como o que acontece com o termo “liberdade”, a revelação bíblica exige de nós que redefinamos os termos seguindo a semântica bíblica e não as imposições filosóficas, ou lógicas humanas. Isso fica bem claro quando entendemos a realidade da criação humana.

1.3. Criados à imagem e semelhança.

Van Til defendeu que a realidade da criação é uma realidade análoga. O ser humano, o vice regente da criação, é a alavanca para movermos o entendimento de que a criação não é completamente diferente de seu criador, tão pouco igual. Salmo 19 aponta para a revelação de Deus; um discurso contínuo da criatura sobre seu criador. Isso significa que, há revelação de Deus, impressão de Deus em sua criação. Em níveis diversos, até o mais alto no homem, o Criador colocou algo de si, mesmo que não em essência, mas metafisicamente em cada ser da criação que os remete a seu Criador. Faz parte da criação apontar para o Criador, de modo que, somos algo que o reflete – daí, análogos.
É na afirmação de que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus que essa ideia se torna plausível e compreensível. Não há nada igual a Deus, mas há coisas que refletem algo de Deus, até que o ser humano não só reflete esse Deus, mas ganha atributos divinamente comunicados: domínio, moralidade, criatividade, fecundidade, afetividade, relacionalidade, etc. Existimos para que a criatura veja seu Criador em nós, mas, como parte da criação, que possui uma relação direta de causa e efeito com a própria criação, essa reflexão é limitada, portanto, nem diferente, nem iguais, somos análogos a Deus.
É nessa analogia que descobrimos que nossos termos são fragilmente distanciados do criador. Insistimos em partir das ideias para Deus, ao invés de, vermos as ideias a partir de Deus. Conhecimento, verdade, amor, liberdade, responsabilidade, necessidade, graça, misericórdia, bondade, vida, ira, medo, angústia e tudo mais precisa ser colocado diante do Senhor e redefinido conforme ele. Se nossa existência análoga a Deus nos constitui metafisicamente, também o deve ser epistemologicamente, daí, eticamente, também.
Se há algo da imagem de Deus em nós, então, somos nada mais que a expressão de quem Deus é. Nosso ser é feito para revelar a Deus. Nossas capacidades, atributos e constituições existem para esse fim. Nossa vontade não existe apenas para expressar nossas intenções, mas faz parte do que foi feito por Deus para que cumpríssemos o papel de reveladores. De certa forma, nossa vontade é expressão da vontade de Deus.
Sendo a mais elaborada criatura de Deus, aquelas por nós dominadas, também são teorreferentes. Salmo 104, por exemplo, aponta para algumas características de Deus reveladas em sua relação com as coisas existentes. Isso apoia a ideia de que desde o mais simples ao mais complexo, todos existem para o Criador. Sendo assim, o funcionamento da criação visa cumprir o propósito divino.

1.4. Do plano à prática

Não sei se você já fez essa pergunta, mas a realidade de causa e consequência em que vivemos é assim por alguma razão. Uma coisa não leva à outra por uma necessidade da criação, mas por um propósito do Criador. Isso significa dizer que, as coisas funcionam como funcionam, pois foram criadas para que assim o fosse. Deus não deu apenas formas, mas deu a ação. Na realidade, há uma ligação entre forma e ação. Há uma ligação entre ideia e fato, há ligação entre as coisas e isso não é próprio do ser, mas da função que lhe foi atribuída. Foi Deus quem disse como as coisas deveriam funcionar, para que tudo lhe fosse análogo e lhe servisse ao propósito revelacional. Isaías 40 a 45 nos dão uma boa noção de que Deus está por detrás de fatos e seres.
O determinismo existencial, que nos faz entender que uma coisa leva à outra, é uma concessão divina. A certeza da ordem e o modo como as coisas afetam umas às outras é uma determinação divina. Ele não disse apenas quem, mas onde, como, porque, para que, quando, enfim, as coisas foram criadas a fim de que sejam o que são.

1.4.1.      O pecado

Ainda que venhamos a pensar no pecado, algo que ofende o caráter de Deus, não há como afastá-lo do Criador. Definir, dar-lhe os meios para existir e a forma como afetará a criação é uma atribuição criadora. A Escritura nos coloca um Criador que se relaciona com o mal e não como um Criador que vê sua criação invadida pelo pecado.
É interessante observar o diálogo da trindade, por ocasião da queda. Gênesis 3.22 “Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal”. A palavra para conhecer no hebraico (ידע  yada`) nos dá uma ideia relacional e não apenas cognitiva. O conhecer é fruto de uma relação, de uma experiência própria. Somos informados por João que em Deus não há treva (σκοτία) nenhuma (1Jo 1.5), portanto, a experiência de Deus com o bem e o mal não é idêntica à nossa. Enquanto somos afetados pela criação, Deus não o é. Mesmo o bem que há na criação, não afeta a Deus – como poderia a fonte de todo bem receber de quem recebe dele? (Is 40.26).
O pecado não é uma surpresa na criação. Tão pouco o pecado é um invasor indesejado, caso contrário, não encontraria meio para desenvolver-se e afetar a criação. O Criador fez as coisas deturpáveis e caíveis por uma razão. O mal não teria chance de existir se o sumo bem não o tivesse dado vez e lugar. Se entendemos Deus como o criador perfeito, onisciente, onipresente e onipotente, isso tem de nos conduzir à compreensão de que o mal só pode existir se ele o quiser.

2.  Natureza do mal

Se tem algo com que concordo com Agostinho é que o mal não tem existência própria. A Escritura afirma que Deus criou todas as coisas boas (Gn 1.10,12,18,21,25,31). O mal não encontra em Deus sua fonte direta, portanto, nem na criação sua elaboração. Sendo assim, como pode o mal existir?
A narrativa bíblica trata o mal como algo presente dentro de todo o bem criado. Satanás já aparece como o tentador e não temos notícia de como ele veio a ser o que é de modo detalhado. Contudo, podemos olhar a forma como ele engana Eva, para entendermos a dinâmica do mal numa criação boa.
Em Gênesis 3 vemos o encontro entre Eva e a serpente. Essa, mais sagaz dentre todos os animais, confrontou Eva com uma distorção e negação da Palavra dada por Deus. Eva, diferentemente do que muitos pensam, não foi ingênua, ou inocente no sentido de que não sabia o que era certo e errado a ponto de não poder julgar a oferta da serpente. De fato, quando comparamos o que Deus disse e o que a serpente e Eva vieram a dizer, vemos que Eva já começara a distorcer por si mesma as ordens de Deus, mas demonstrando entender que há certo e errado. Vejamos:

Deus: “mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” (Gn 2.17);
Serpente: “Não comereis de toda árvore do jardim?” (Gn 3.1);
Eva: “mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais.” (Gn 3.3);

Cada um apresentou sua versão da verdade. A de Deus, certamente, é a correta, já que ele é quem estabelece o que é e o que não é verdade. A serpente, no entanto, tentou sumir com a restrição imposta por Deus de que não se deveria comer da árvore do conhecimento. Eva, por sua vez, tentou ir mais longe do que Deus havia dito. Tanto a serpente quanto Eva apresentaram distorções da verdade o que, em si, já é uma forma de se afastar de Deus. O passo seguinte foi Eva ter um desejo distorcido, de modo que, na possibilidade de desfrutar de tudo que havia no jardim ela preferiu comer o que o Senhor havia proibido.
Eva olhou para o fruto a partir de sua própria perspectiva. O que era limite e morte, tornou-se bom para dar alimento e entendimento. O mal não se estabeleceu independentemente, mas como uma deturpação do bem. Nesse sentido, digo que o mal é o bem deturpado e tem sua existência derivada do que é bom. Aqui, poderia dizer como Agostinho que o mal não tem substância própria, de forma que, não é diretamente criado. Porém, isso é a parte prática do mal e não sua existência conceitual, o que já é em parte o mal. É nesse ponto que Deus entra.
O mal não está na natureza divina, mas está em seus planos. Não podemos confundir o atributo com o ser. Deus é amor, mas o amor não é Deus. Onde Deus está há graça, mas nem sempre onde há manifestação de algum tipo de graça, amor, ira significa que é conforme Deus. O amor homossexual, a graça entre bandidos que dão um ao outro o que não merecem e a misericórdia leniente da justiça brasileira demonstram como atributos não são a natureza em si das coisas. De fato, é a natureza que determina a forma dos atributos.
Foi a natureza livre da criatura que trouxe o mal à prática. Por livre entenda-se a possibilidade de agir contrário a seu estado. Deus criou as coisas com a possibilidade de mudarem de estado. Enquanto ele é eternamente bom, imutável, a criação não. Diante disso, o mal é a deturpação, a transição do estado de conformidade com o caráter do Criador, para um estado diverso ao caráter do Criador.
O problema do estado pecaminoso é sua intransitoriedade. A Bíblia o descreve como “prisão/escravidão” (Jo 8.34) e “morte” (Ef 2.1). É clara a intenção de descrever o pecado como um estado que torna o homem incapaz de retornar por si mesmo ao estado inicial. A liberdade possibilitou a mudança de estado, mas não o retorno. Afastados de Deus, em rebelião com a fonte de todo bem, resta ao homem seu estado deturpado, sua natureza caída, a imagem de Deus manchada e sua mente embotada pela iniquidade, que ainda tenta deter a verdade revelada na criação.
A morte espiritual, portanto, não se trata de inatividade, mas de rebelião. Podemos pensar a partir da ideia de comunhão e entender a morte espiritual como a falta de comunhão com Deus. Nossa vida é a comunhão do corpo e da alma, quando se separam, temos a morte (Ec 12.7). Nossa vida espiritual, portanto, pode ser vista como a comunhão do homem com seu Criador, ainda, com seu Filho (Jo 14.6).

3. De olho na eternidade

Um fator decisivo, em minha opinião, é a promessa de vida eterna. A Escritura nos mostra que o estado de pecaminosidade não será para sempre, mas o de santidade sim. A descrição da Nova Jerusalém em Apocalipse 21 é estonteante. Ainda que alguns queiram focar nas ruas de ouro e nas pedras preciosas, a grandeza da morada eterna é que o Cordeiro é seu habitante.
A descrição não visa um lugar literalmente daquela forma. O olhar cuidadoso revelará que João fez uma descrição da grandeza da obra de Deus na vida de seu povo. A beleza da cidade é a representação da santidade do povo de Deus, ao ponto de que seremos habitação eterna de seu Filho, um de nós, após a encarnação. É a noiva por quem Cristo se entregou “para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra, 27 para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito.” (Ef 5.26-27)
Com isso, Deus mostra que sabe nos fazer incaíveis. Com essa realidade, ele demonstra que a liberdade com a qual fomos criados é uma contingência – não necessária para que sejamos humanos, e que não existirá mais após a glorificação. Seremos eternamente santos e, se ainda não o somos, é por vontade do Criador. Fosse outro o plano de Deus, outra seria a criação. É essa relação que entendo ser tão fundamental para entendermos algo tão complicado: cremos que tudo é criado muda tudo.

4.    Algumas afirmações

Quero ter o cuidado de deixar algumas coisas claras:
a)      Deus não criou o mal da mesma forma como criou o bem;
b)      Deus não é afetado pelo que cria;
c)      Concordo com a CFW de que Deus não é o autor do pecado (ele não pratica o mal);
d)      Deus é bom, não há nele treva alguma, ele é amor, soberano, justo, perfeito...
e)      Há muito que aprender sobre tudo isso e não considero a questão resolvida – só quando Jesus voltar bato o martelo;
f)       Essa não é uma questão Calvinismo vs. Arminianismo, ainda que essas visões teológicas influenciem as coisas;
g)      Comente fazendo perguntas e colocações, afirmações do tipo: “você é um herege”; “blá, blá, blá”; “calvinismo isso, ou aquilo”, nem vou publicar;


Comentários

  1. Texto rico e esclarecedor! Gostaria que falasse sobre romanos 9. Dupla predestinação.

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  2. Rev. Ricardo, o que você acha da reprovação passiva de Deus em elação aos réprobos?

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